1)A usucapião especial urbana pode ser reconhecida e ser
objeto de registro no cartório de registro de imóveis sem que, necessariamente,
exista uma sentença judicial?
R=Tradicionalmente a usucapião,
definida como modalidade de aquisição originária da propriedade através da
prescrição aquisitiva, é reconhecida através de sentença judicial de carga
eficacial preponderantemente declaratória. A necessidade de um provimento
judicial está tão arraigada ao instituto, que o próprio CC/02 – repetindo na
literalidade dispositivo do CC/16 – fez-lhe referência expressa no art. 1.238,
caput, no trecho “assim o declare por sentença”:
“Art. 1.238. Aquele que, por quinze
anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a
propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que
assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no
Cartório de Registro de Imóveis.”
Contudo, a exigência de provimento
judicial para o reconhecimento da usucapião não foi repetida nos demais
dispositivos do CC pertinentes à usucapião, principalmente nos arts. 1.239 e
1.240 – que não encontram equivalente no CC/16 – ao tratarem da usucapião
especial rural e urbana.
Comumente a usucapião é declarada via
sentença judicial por força do art. 1.241 do CC e art. 941 do CPC, que
estabelecem que a usucapião será declarada judicialmente, via ação direta:
“Art. 1.241. Poderá o possuidor
requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade
imóvel.
Parágrafo único. A declaração obtida
na forma deste artigo constituirá título hábil para o registro no Cartório de
Registro de Imóveis.”
“Art. 941. Compete a ação de
usucapião ao possuidor para que se lhe declare, nos termos da lei, o domínio do
imóvel ou a servidão predial.”
Ainda no âmbito judicialmente,
admite-se a declaração de usucapião através da via incidental quando arguida em
matéria de defesa, o que é legalmente admitido para as modalidades especiais de
usucapião, consoante autorização do art. 7º da Lei 6.969/81 e art. 13 da Lei
12.257/01 - Estatuto da Cidade:
“Art. 7º - A usucapião especial
poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer
como título para transcrição no Registro de Imóveis.”
“Art. 13. A usucapião especial de
imóvel urbano poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença
que a reconhecer como título para registro no cartório de registro de imóveis.”
Doutrinariamente, defende-se
ampliação da possibilidade de registro da usucapião arguida como defesa em
processo judicial também para as outras modalidades – como consta do Enunciado
315 da IV Jornada de Direito Civil do CJF – tese, contudo, ainda não acolhida
pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, frise-se.
No entanto, a questão não tratou
propriamente disso, mas da possibilidade de se levar a registro no cartório de
registro de imóveis um título que declare a usucapião, sem que este título
seja, necessariamente, uma sentença.
Para fins de registro histórico sob a
ordem constitucional pretérita – quando ainda era admissível o usucapião de
terras devolutas – o § 2º do art. 4º da Lei 6.969/81 admitiu expressamente o
reconhecimento administrativo desta modalidade de usucapião, servindo o ato
administrativo que assim dispusesse como título hábil para registro
imobiliário. In litteris:
“Art. 4º - A ação de usucapião
especial será processada e julgada na comarca da situação do imóvel.
§ 2º - No caso de terras devolutas,
em geral, a usucapião especial poderá ser reconhecida administrativamente, com
a conseqüente expedição do título definitivo de domínio, para transcrição no
Registro de Imóveis.”
Por óbvio, a norma acima transcrita
não foi recepcionada pela Constituição de 1988, face a proibição de usucapião
de imóveis públicos, constante dos arts. 183, § 3º, 191, parágrafo único, e da
definição de terras devolutas como bens públicos, nos arts. 20, II, 26, IV.
Contudo, mesmo com a vedação de
usucapião de bens públicos, o § 1º do art. 183 da CF foi claro ao estabelecer a
possibilidade de “concessão de uso” àqueles que detivessem a posse ad
usucapionem por 5 anos sobre área urbana de até 250 m2:
“Art. 183. Aquele que possuir como
sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos,
ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro
imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a
concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos,
independentemente do estado civil.”
A MP 2.220/01, ainda em vigor por
força do art. 2º da EC 31/01, ao regulamentar esse dispositivo constitucional
reconheceu no art. 1º a concessão de direito real de uso especial para fins de
moradia sobre bens públicos, desde que atendidos certos requisitos temporais:
“Art. 1o Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu
como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e
cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana,
utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de
uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que
não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel
urbano ou rural.”
O art. 6º da MP 2.220/01 foi expresso
em admitir a possibilidade de reconhecimento administrativo deste direito real,
cujo suporte fático em muito se assemelha à usucapião especial urbana:
“Art. 6º O título de
concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou,
em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial.”
Do que fora apontado acima, pode-se
concluir, cientificamente, que o pronunciamento judicial não é essencial para o
reconhecimento válido da usucapião, desde que exista norma que autorize o
reconhecimento administrativo ou extrajudicial da prescrição aquisitiva da
propriedade ou de outro direito real. Tal norma permissiva funcionaria como
norma especial aos arts. 1.241 do CC e art. 941 do CPC, sem, contudo,
revogá-los, consoante o critério da especialidade das leis previsto no art. 2º, § 2º, da LIN (antiga
LICC). Isto porque, a rigor, o pronunciamento judicial não compõe o suporte
fático do instituto da usucapião, cujo fato gerador se restringe apenas à
posse, ao ânimo de dono e ao decurso de tempo.
Postas tais diretrizes, é de destacar
que nos últimos anos em razão da “crise do judiciário” e do advento da EC
45/04, verificou-se a desjudicialização como política legislativa, do que são
exemplos a arbitragem (Lei 9.307/96), a mediação e conciliação como métodos
alternativos de resolução de conflitos (Resolução 125/10 do CNJ), a Câmara de
conciliação e arbitragem da administração federal (Ato Regimental 5/07 da AGU)
e o inventário, partilha, separação e divórcio consensuais por via
administrativa (Lei 11.441/07).
A usucapião, mesmo que de
forma tímida e restrita, como se verá a seguir, passou a integrar este seleto
rol de medidas de desjudicialização, que passaram a ser admitidas e incentivadas
na esfera administrativa ou extrajudicial, pautada na autonomia da vontade dos
indivíduos, como expressão da dignidade da pessoa humana, demonstrando que os
cidadãos modernos não necessitam da fiscalização permanente do estado-juiz,
sendo eles mesmos efetivos protagonistas de suas vidas e patrimônios,
reservando-se preferencialmente – mas não obrigatoriamente, dada a
inafastabilidade garantida no art. 5º, XXXV, da CF – a jurisdição aos conflitos
que não possam ser solucionados de outra maneira.
A Lei 11.977/09 – Programa Minha Casa
Minha Vida (PMCMV), instituiu a conversão da legitimação de posse em
propriedade, instituto conhecido doutrinariamente como “usucapião administrativa”, sendo um mecanismo ágil,
eficiente e menos oneroso para a regularização fundiária da ocupação do solo
urbano, de importância ímpar para concretizar o direito social à moradia,
previsto no art. 6º da CF.
Os arts. 46, 47, III, IV, VII, do
PMCMV definem o que vem a ser regularização fundiária de interesse social,
demarcação urbanística e legitimação de posse, enquanto importantes institutos
do direito urbanístico:
“Art. 46. A regularização fundiária consiste no
conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à
regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de
modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções
sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
Art. 47. Para efeitos da regularização fundiária de
assentamentos urbanos, consideram-se:
III – demarcação urbanística:
procedimento administrativo pelo qual o poder público, no âmbito da
regularização fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio público
ou privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a
finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das
respectivas posses;
IV – legitimação de posse: ato do
poder público destinado a conferir título de reconhecimento de posse de imóvel
objeto de demarcação urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e
natureza da posse;
VII – regularização fundiária de
interesse social: regularização fundiária de assentamentos irregulares
ocupados, predominantemente, por população de baixa renda, nos casos: (...)”
Paralelamente a isto, as alíneas ‘t’ e ‘u’ do inciso V do art. 4º do Estatuto
da Cidade classificam a demarcação urbanística para fins de regularização
fundiária e a legitimação de posse como institutos jurídicos da política urbana, conforme
reserva de competência prevista no art. 182, caput, da CF para o
estabelecimento de diretrizes gerais por intermédio de lei federal.
Na última fase do procedimento de
regularização fundiária de interesse social, após a averbação do auto de demarcação urbanística e do
registro do parcelamento no cartório de registro de imóveis, o
poder público (União, Estados ou Municípios) concederá aos ocupantes
cadastrados um título de legitimação de posse, conforme art. 58 da Lei 11.977/09, que é um
ato administrativo que identifica o tempo, a natureza da posse e a pessoa do
ocupante do imóvel:
“Art. 58. A partir da averbação do auto de demarcação
urbanística, o poder público deverá elaborar o projeto previsto no art. 51 e
submeter o parcelamento dele decorrente a registro.
§ 1º
Após o registro do parcelamento de que trata o caput, o poder público
concederá título de legitimação de posse aos ocupantes cadastrados.”
Frisamos que a legitimação de posse
qualifica juridicamente a situação de fática que é a posse, possui a natureza
de um direito pessoal (e não real), que assegura a seu detentor a posse direita
para fins de moradia. A legitimação de posse não
poderá ser concedida a quem já for concessionário, foreiro ou
proprietário de outro imóvel urbano ou rural nem a quem já fora beneficiado por
outra legitimação de posse, conforme art. 59 e § 1º da Lei 11.977/09, no que
praticamente repete os requisitos da usucapião especial urbana previstos no
art. 183, caput, da CF. In litteris:
“Art. 59. A legitimação de posse devidamente registrada
constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de
moradia. (Redação dada pela Lei nº
12.424, de 2011)
§ 1º A legitimação de posse será
concedida aos moradores cadastrados pelo poder público, desde que: (Renumerado
do parágrafo único pela Lei nº 12.424, de 2011)
I - não sejam concessionários,
foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural; (Redação dada pela
Lei nº 12.424, de 2011)
II - não sejam beneficiários de
legitimação de posse concedida anteriormente. (Redação dada pela Lei nº 12.424,
de 2011)”
Por seu turno, o ato administrativo
da legitimação de posse constitui título apto a registro na matricula do
respectivo imóvel junto ao cartório de registro de imóveis, nos termos do art.
167, I, item 41, da Lei 6.015/73 – Lei de Registros Públicos (LRP). A partir
deste registro, a posse passa a ser considerada como legitimamente titulada,
passando a existir, doravante, uma presunção de conhecimento por terceiros,
derivada da publicidade registral prevista no art. 1º da Lei 8.935/94. Citamos
os dispositivos legais:
“Art. 167 - No Registro de Imóveis,
além da matrícula, serão feitos.
I - o registro: (Redação dada pela Lei nº
6.216, de 1975).
41.
da legitimação de posse; (Incluído pela Lei nº 11.977, de 2009)”
“Art. 1º Serviços notariais e de
registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a
publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.”
Decorrido o prazo legal de 5 anos da
usucapião especial urbana desde o registro da legitimação, sem que haja
oposição, o possuidor poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a
conversão do título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por
usucapião, segundo o art. 60, caput, da Lei 11.977/09:
“Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da
posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse,
após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de
imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua
aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.”
Destacamos que a forma pacífica da
posse será comprovada junto ao registro de imóveis segundo o § 1º, inciso I, do
art. 60 do PMCMV, através das “certidões do
cartório distribuidor demonstrando a inexistência de ações em andamento que
versem sobre a posse ou a propriedade do imóvel”, sendo a lei expressa no § 2o
deste art. 60 que “as certidões previstas no inciso I do § 1o serão relativas à
totalidade da área e serão fornecidas pelo poder público”.
O uso útil do imóvel de propriedade
de outrem para fins de moradia pelo lapso da prescrição aquisitiva, sem que o
anterior proprietário nada reclame, é a expressão máxima da função social da
propriedade prevista no art. 5º, XXIII, da CF, já que o antigo proprietário
quedar-se-á despojado da propriedade do bem, exatamente por não haver observado
as finalidades econômicas e sociais, que passará a pertencer a outrem a quem
serviu com sua função social de moradia.
A conversão da legitimação em
propriedade se cuida de uma nova modalidade de aquisição originária da
propriedade imóvel, bastante semelhante à usucapião especial urbana. A
conversão da legitimação de posse em propriedade será um ato de competência do
oficial registrador de imóveis que, igualmente, constituirá um título hábil
para registro na matrícula do imóvel, conforme art. 167, I, item 42, da LRP:
“Art. 167 - No Registro de Imóveis,
além da matrícula, serão feitos.
I - o registro: (Redação dada pela
Lei nº 6.216, de 1975)
42.
da conversão da legitimação de posse em propriedade, prevista no art. 60
da Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009; (Incluído pela Lei nº 12.424, de
2011)”
No ponto frisamos que, embora num
primeiro momento o PMCMV apenas possibilitasse a usucapião administrativa de
imóveis de até 250 m2, a Lei 12.424/11 incluiu um § 3º no art. 60 da Lei
11.977/09 que ampliou a possibilidade de conversão da legitimação de posse em
propriedade para terrenos urbanos com área superior a 250 m2, desde que
previamente inseridos no auto
de demarcação urbanística da regularização fundiária de interesse social. Contudo,
sendo o imóvel urbano maior que 250m2, o tempo necessário à conversão da
legitimação de posse em propriedade será o estabelecido em lei para a usucapião
respectiva, sendo possível deduzir que o prazo será de 10 anos, da usucapião
extraordinária imobiliária abreviada pela função social da moradia, conforme
parágrafo único do art. 1.238 do CC. Citamos os dispositivos:
“Art. 60. (...)
§ 3o
No caso de área urbana de mais de 250m² (duzentos e cinquenta metros
quadrados), o prazo para requerimento da conversão do título de legitimação de
posse em propriedade será o estabelecido na legislação pertinente sobre
usucapião. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)”
“Art. 1.238. (...)
Parágrafo único. O prazo estabelecido
neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no
imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter
produtivo.”
Do exposto acima, denota-se que a
particularidade da usucapião administrativa (conversão da legitimação de posse
em propriedade) é que apenas o tempo de posse legitimamente titulada, é dizer,
após o registro da legitimação de posse no cartório de imóveis, é que será
computado para fins de prescrição aquisitiva a ser declarada pelo oficial de
registro.
O tempo de posse com animus domini anterior ao
registro da legitimação no cartório de registro de imóveis não se prestará para
fins da prescrição aquisitiva da conversão em propriedade.
Contudo, a teor do art. 60, caput, in
limine, da Lei 11.977 (“Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida
anteriormente...”), continuará sendo possível que o tempo não titulado seja
computado para fins de usucapião, entretanto o interessado deverá optar
obrigatoriamente pela via judicial para que o tempo anterior ao registro da
legitimação seja considerado na declaração da usucapião pelo juiz, através de
sentença. Inclusive nada obsta que se considere no processo judicial também o
tempo de posse já titulada em conjunto com o tempo de posse não titulado para
efeito de totalização da prescrição aquisitiva, sendo até de mais fácil
constatação probatória.
Por hoje é só!!!
abraços!